[ANSOL-geral] Mais um disparate sobre pirataria

Paula Simoes paulasimoes gmail.com
Terça-Feira, 15 de Maio de 2012 - 19:59:02 WEST


Gostaria de dar a minha opinião sobre isto. O mail ficou enorme, quem não se interessar por estas questões pode passar ao próximo :-)

On Tuesday, May 15, 2012 at 9:42 AM, Ricardo Lafuente wrote:

> Certíssimo -- e é por isso que me faz confusão ver comentários como  
> "isto é legal" ou "esta lei quer dizer X" de forma tão taxativa. Não  
> tenho a menor intenção de pregar como se deve ter esta discussão, mas  
> são assuntos em que importa ter algum cuidado com as asserções, digo eu.


Eu concordo que a discussão sobre esta matéria foi demasiado prolongada, gerou polémica e tenho consciência que fui uma das pessoas que contribuiu para isso.  
Apesar disto, acho que:

1) Estas matérias não podem estar dependentes de advogados e são transversais a todos os domínios da vida do cidadão;
2) Estas matérias são relevantes para quem desenvolve software.

Vou justificar separadamente:

1) No séc passado, o consumidor era apenas isso. Mas hoje, o consumidor é um produtor em potência (o chamado "prosumer").  
No séc passado, quem fazia conteúdos eram os profissionais. Daí, o software que se fazia era dirigido aos profissionais, e portanto, a um grupo restrito. A evolução destas coisas permitiu que, hoje, um utilizador que não percebe nada de edição de fotografia possa não só tirar uma foto, como colocar uns efeitos e publicá-la imediatamente.
Não é razoável pensar que cada vez que eu quero tirar uma fotografia com o meu Android (que é software livre) tenha de consultar um advogado para saber se posso tirar a fotografia. Não é razoável que cada vez que eu queira fazer um post no meu blog em wordpress (que é software livre) eu tenha de consultar um advogado para saber se posso publicar esse post.

É certo que há coisas mais específicas que, pela sua complexidade, exigem a opinião de um advogado, mas no geral podemos ler a lei e saber no geral o que podemos ou não fazer.  
O problema é que a maior parte das pessoas não sabe sequer de forma geral o que é que pode fazer.  

Eu não tenho dúvidas que a maior das pessoas que forem à BND e clicarem no livro do sr Eça de Queiroz e lerem a info que lá está que diz que aquela digitalização só pode ser usada para fins privados, acredita mesmo que sim.

E por isso eu acho que é muito positivo que se discutam estas coisas, mesmo que não em presença de advogados, e que as pessoas falem disto umas com as outras.

Nestas questões, tens várias pessoas com opiniões diferentes: aquelas que acham que o copyright/direito de autor está muito bem como está; aquelas que acham que devia terminar com a morte do autor, aquelas que demonstraram matematicamente que a duração óptima do copyright é de pouco menos do que 15 anos após publicação da obra, aqueles que independentemente da duração acham que a lei devia ser actualizada para lidar com o mundo digital e aqueles que não concordam com nada disto e que consideram que um autor é um trabalhador como outro qualquer e assim deveria ser tratado.

Mas quando eu me insurjo contra o discurso daquelas entidades de "protecção" aos autores e grandes editoras, não me estou a insurgir contra o que descrevi no parágrafo anterior.
Porque o que estas entidades defendem é um copyright eterno e sem excepções.
Estas entidades não querem saber se é ilegal ou legal (elas, melhor do que ninguém, sabem que o que é legal ou ilegal hoje, amanhã pode não ser). Essa estratégia foi abandonada em 1992, no dia em que o Congresso Americano aprovou o Audio Home Recording Act.

Porque o problema desta gente não é a pirataria. O problema desta gente é a abundância (mas a abundância é excelente para quem faz software - ver ponto 2) abaixo). E, portanto, a estratégia é forçar um mundo de escassez através da lei, uma vez que os modelos de negócio destas entidades foram desenhados para um mundo de escassez em conteúdos.

A luta contra a pirataria é apenas uma parte e a que é mais visível porque o público, os cidadãos, cresceu no séc XX, onde estas leis faziam sentido, e portanto este discurso ganha alguns adeptos.

Estas entidades não podem vir a público dizer:
- vamos matar o domínio público
- vamos lutar contra as CC e open access
- vamos eliminar as utilizações livres e o fair use
- vamos manter as obras órfãs no limbo onde estão

Porque todos os cidadãos se revoltariam contra isto.
Mas a verdade é que estão a fazer isto, tanto quanto estão a lutar contra a pirataria. Posso dar exemplos, se quiserem.

A estratégia é convencer as pessoas que tudo tem direito de autor, que todo o uso precisa de autorização e quando houver dúvidas é para consultar um advogado (a maior parte das pessoas não vai ao advogado, simplesmente não usa). Ao mesmo tempo, convencer os políticos a restringir as utilizações. Assim, quando elas passarem para a lei, ninguém se queixa. A maior parte das pessoas até pensava que já não se podia fazer…

Porque é que isto é mau para quem desenvolve software? Porque é que quem desenvolve software tem todo o interesse em incentivar os cidadãos a fazerem o mais possível as utilizações permitidas pela lei? Porque é que uma associação que representa quem faz software tem todo o interesse em defender maior liberdade na utilização de conteúdos?

2) Porque o software vive de conteúdos. (eu não faço software, nem sou informática, pelo que isto é o que eu vejo de fora, se estiver errada, corrige).

Vejo três possibilidades, de uma forma geral:
a) software que serve para o utilizador gerar conteúdos novos de raíz
b) software que serve para mostrar (visualizar, preservar, partilhar, etc) conteúdos existentes
c) software que serve para modificar, alterar, remisturar, conteúdos existentes.

O único caso onde de alguma maneira se possa dizer que "direitos de autor são para advogados e eu não tenho nada a ver com isso" sem grandes stresses, é o primeiro. Mas este é também aquele que menos pessoas atinge. Porque criar conteúdos novos de raiz é muito difícil, exige tempo e aprendizagem. E, portanto, esse tipo de software não é aliciante para o utilizador comum.

O Museu de Londres abriu as Galerias Modernas em 2010 e contactou uma empresa "de criatividade" para arranjar algo tecnológico que criasse "buzz". Daqui surgiu o Streetmuseum (não é software livre, mas podia ser).
É uma aplicação móvel que tem quadros e fotos de Londres do passado. Podem ser vistas na aplicação, mas se estiverem Londres, têm um mapa com uns alfinetes a indicar onde há fotos, dirigem-se para esse local, e têm uma opção onde podem ver a rua (real) e sobreposta a foto do mesmo local há x anos atrás.

A visão da empresa (Brothers&Sisters) - O Museu não tinha muito dinheiro, mas tinha imenso conteúdo. Refere-se à app como "its the gift that keeps on giving". Apareceram em tudo quanto era jornal, TV, web, etc. Ganharam imensos prémios. A seguir fizeram uma app do mesmo género com o Museu e o History Channel, agora com vídeo. Depois fizeram outra com o Museu sobre o Charles Dickens (é uma graphic novel, onde o primeiro fascículo é grátis e os outros ou se compram ou se vai ao Museu e faz-se o download gratuito), depois fizeram uma app do mesmo género para um Museu em Montreal. Ao mesmo tempo começaram a receber pedidos de outras empresas. No blog, cada vez mais têm posts a dizer "contratámos mais duas pessoas"…

A visão do museu: (não sei como contaram) os visitantes aumentaram, a reputação do museu como instituição na vanguarda da tecnologia aumentou, tiveram imensa publicidade nos media e redes sociais…

Isto teve um sucesso estrondoso.

Se o copyright fosse eterno e não tivesse excepções, o museu teria de comprar, se conseguisse, todos os direitos das imagens e depois ficava sem dinheiro para fazer o resto.

Imagina que um museu contacta uma empresa de software porque tem quadros, 1ªs edições de livros, mapas, documentos, em domínio público e diz à empresa que quer pôr aquilo no site para chamar pessoas.
Se a empresa achar que "direitos de autor são para advogados e eu não tenho nada a ver com isso", agarra naquilo, digitaliza, instala o Omeka e pronto.
Se a empresa souber o que é o direito de autor, o que significa uma obra estar em domínio público, o que são creative commons, quais são as excepções ao direito de autor, etc., pode fazer o mesmo e pode sugerir mais ao museu. Por exemplo, se as obras e as suas digitalizações estão em domínio público, não terão problemas de direitos. Porque não fazer uma aplicação (para o site, para o telemóvel) onde por exemplo se diga (uma ideia louca): faça a capa de "Os Maias".

É claro que fazer uma capa de raiz, é frustrante: os resultados não vão ser satisfatórios, a maior parte das pessoas não sabe fazer gráficos, desenho, etc.
Mas o museu tem outros materiais em domínio público: quadros e/ou desenhos e/ou fotos de pessoas, de paisagens (boas para background), de quintas (havia uma quinta nos Maias, certo?), de um tanque de água (onde o avô tomava o banho da educação inglesa, certo?) etc.
E se estão em domínio público, podem ser recortados e disponibilizados para os users escolherem e criarem uma capa a partir deles, e podem ter efeitos e etc. E letras para o título e autor e designer da capa :-)
E porque estão em DP, o direito de autor da capa é do utilizador que a criou e pode ser dada a possibilidade dele escolher uma licença (copyright, CC, etc) para partilhar no Blog, Twitter, Facebook, etc...
Mas o livro está domínio público! Porque não formatá-lo pronto para impressão e dizer às pessoas: se quiser, clique aqui para imprimir uma edição de "Os Maias" com a sua capa!

Isto não funciona só para livros, nem para todos os livros (autores que ninguém conhece, será difícil puxarem pessoas), é só uma ideiazeca de exemplo.
O museu pode não gostar da ideia ou até pode achar que pode atrair pessoas...

O que quero dizer com isto tudo é que faz todo o sentido que quem faz software:

a) defenda o domínio público, as CC e as utilizações livres dos conteúdos porque quanto mais os utilizadores puderem fazer com os conteúdos, maior será o mercado para o software (o software não vive sem conteúdos, mas a verdade é que os conteúdos também não vivem sem software e este pode até criar novas formas de ver e mostrar e alterar esses conteúdos já existentes)

b) se preocupe e tente saber o que é que o direito de autor permite e o que é que não permite porque se souber o que é possível fazer legalmente com determinado conteúdo, será mais fácil arranjar uma forma que se pretende criativa para (re)utilizar esse conteúdo.

A Europeana foi um sucesso: quando abriu ao público, foi logo abaixo com a quantidade de acessos. Mas apesar de ser giro e podermos ir lá procurar e ver coisas, não há muito que se possa fazer, não há propriamente uma utilidade. Quantos de vós vão regularmente ao site da Europeana?
E a preocupação agora é precisamente essa: arranjar forma de usar os conteúdos que lá estão (alguns ainda têm direitos, outros não), para envolver as pessoas com o seu património cultural.

Acredito que muitas instituições, cuja prioridade foi de digitalizar conteúdos se vejam agora com o mesmo problema: o que fazer e como fazer para maximizar a utilidade de tudo isto? Como levar os utilizadores a interagir com estes conteúdos? E isto só pode ser feito através de software.

http://pro.europeana.eu/web/guest/hackathon-prototypes

Se chegaram aqui, obrigada pela paciência,
Paula









Mais informações acerca da lista Ansol-geral