[ANSOL-geral] Re: Digest Ansol-geral, volume 43, assunto 21
J M Cerqueira Esteves
jmce artenumerica.com
Terça-Feira, 19 de Junho de 2007 - 16:42:38 WEST
Manuel Silva wrote:
> Ao contrário
> do que se possa inicialmente pensar, as mais-valias não são mutuamente
> exclusivas.
Nem eu sugeri que fossem sempre mutuamente exclusivas --- caso contrário
também não usaria as que uso sem a isso ser obrigado.
> Pelo que percebi, o Carlos fala na necessidade de de formarem as
> pessoas em tecnologias de informação em vez de se andar a dar
> computadores ao desbarato. Não percebo de onde vem a associação de
> ideias do "gabinete de serviços para info-excluídos".
Não dessa necessidade por ele referida, mas do frenesim de tendência
Internet-only e tecnologia-acima-de-tudo do chamado "plano tecnológico".
Já agora, continuando a "desconstrução": logo o nome "plano tecnológico"
parece-me uma aberração. Não apenas porque "plano" parece em grande
escala e coerência não haver (mesmo que eventualmente haja alguns
sub-planos com sentido), mas porque a coisa parece uma neoplasia do
funcionamento estatal. O estado tem de funcionar, ponto final. Como
parte do funcionamento do estado, seria simplesmente natural migrar
certos componentes para base informática e ir utilizando cada vez mais a
Internet. Não é preciso para isso um "plano" pomposo para isso;
bastaria planeamento sem maiúscula e funcionamento regular competente.
Só que arrumar a casa para chegar ao funcionamento regular competente
parece dar muito trabalho, e então faz-se crescer tecido paralelo:
- mantendo a forma tradicional de criar empresas e todas as complicações
(relevantes ou não) criam-se os centros de formalidades de empresas, uns
pequenos oásis onde as complicações de base são as mesmas mas está tudo
reunido num sítio, se perde menos tempo, os logotipos são frescos, a
mobília é nova, o pessoal talvez esteja condicionado para um atendimento
mais simpático, a imagem é mais prestigiante --- podia-se ter mudado de
raíz, por todo o lado, a forma de criar empresas, mas... não;
- idem para as lojas do cidadão;
- idem para a empresa na hora --- a burocracia do nome e a restante não
mudam (nem acho que toda tenha de mudar), mas é feita batota com o nome
e o formato pré-processados;
- idem com aquela ideia de manter o "selo automóvel" todo na mesma mas
obrigar ao uso da internet --- e era aqui que o cidadão, cercado de
falta de balcões tradicionais, podia acabar a ter de recorrer a um
gabinete de descendentes do senhor com a malinha que preenchia os
impressos à porta do arquivo de identificação.
> tudo funcionasse como deveria, uma pessoa sem conhecimentos que
> necessitasse de recorrer a um serviço público deveria ter junto do
> poder local os meios técnicos e humanos para tratar dos seus assuntos.
Exactamente.
> 3. as responsabilidades públicas reduzem uma vez que deixa de haver o
> risco de erro de introdução de dados por parte dos funcionários.
As responsabilidades públicas mantêm-se porque os dados à guarda do
estado continuam; a possibilidade de alteração abusiva (não acidental)
de dados existe sempre. Diminui algum risco de acidente e a necessidade
de mão de obra.
> Que eu saiba, para os cidadãos individuais vão continuar a existir
> meios para cidadãos que optem por não recorrer aos sistemas de
> processamento on-line, as obrigatoriedades são exclusivamente para
> empresas e organizações com contabilidade organizada.
Já ouvimos em noticiários tentações de assim não ser. Falta saber se
haverá o bom senso de não ir pela obrigatoriedade individual.
>> Será esse um mau cidadão, um cidadão em situação "deficiente"?
>
> Essa pergunta é um tanto ou quanto parva
A consideração de o cidadão ser "deficiente" em info-inclusão e ter de
ser "reeducado" se não puder falar com o estado por via exclusivamente
electrónica parece-me efectivamente parva, mas presente no governo. Daí
a pergunta.
> mas acho que seria bom estudar o que leva um cidadão a não optar pelos meios electrónicos que
> tem ao dispor para se perceber onde se pode actuar para melhorar a educação e cultura.
Está aí implícito que, conseguida a educação e a cultura, será
automático que o cidadão considere *sempre* melhor (mais seguro, mais
eficaz, mais rápido, mais tudo) o meio electrónico, ou mais
genericamente que a adição de tecnologia a um sistema melhora sempre o
sistema para o que dele esperamos? Já agora: também para o voto? :)
Está aí implícito que um cidadão, por mais culto e educado que seja
noutras vertentes, e que opte por não aprender a usar um computador e
não usar a Internet, tem apesar de tudo um déficit de educação e cultura
que é um *problema* a resolver? Mas aqui estou a repetir a pergunta
parva, claro. E podemos dizer o mesmo para a aprendizagem de
matemática, música e latim?
>> > este problema prende-se com o
>> > empobrecimento progressivo da nossa classe média.
>>
>> ... problema que o chamado combate à info-exclusão resolve como?
>
> Colocando as pessoas em pé de igualdade no que respeita à utilização
> de sistemas informáticos.
Isso pode explicar o que se entende por "info-inclusão", mas parece não
explicar muito quão longe irá esse sucesso na inversão do
"emprocebimento progressivo da class média" (o "problema" a que me
referia, 2 linhas logo acima).
> que se limita a criticar a proactividade de outros (por vezes não
> movida pelos interesses mais "puros", mas isso acaba por ser o
> mínimo).
Não tenho por sistema nada contra a proactividade dos outros,
independentemente da utilidade que lhe ache (e também não gosto
particularmente do bota-abaixismo), excepto quando proactividade que me
pareça inútil é mediada pelo estado e suportada pelo dinheiro que (não
opcionalmente) pusemos à sua guarda. Quanto a tentar medir "pureza" de
interesses: além de ser tarefa complicada, já me interessou mais, até
porque uma motivação "impura" pode dar resultados muito nobres.
Se da Microsoft eu esperasse um bom negócio para a sociedade em termos
de literacia a sério, seria perfeitamente capaz de me borrifar para a
(empresarialmente natural) pura ânsia de lucro da Microsoft.
Resumindo: posso compreender perfeitamente (e até apoiar) as visões e
tentativas de outros para, no contexto de "plano tecnológico" em que de
qualquer forma estamos --- como que numa fatalidade do clima --- tentar
dar um pouco a volta às medidas propostas tornando-as menos más e
inúteis, em particular com a introdução de software livre em vez de
proprietário. Mas ao mesmo tempo, e em conflito, fica a sensação de ao
"entrar" se acabar sobretudo por contribuir em cumplicidade algo ingénua
para um jogo que está podre à nascença. Acaba por apetecer fazer pouco
ou nada em colaboração com o estado, por mais pequena que possa ser a
alternativa de acção fora dele (será?), e deixar a MSFT ficar com o
exclusivo da literacia de plástico e do dinheiro.
Até porque, acredito (mas não como desculpa para passividade), a maré do
software livre virá inevitavelmente a tapar este lixo caro.
E também acredito que se a MS não tivesse já percebido o que está para
lhe acontecer, não estávamos agora a ver estas "literacias", live edu,
Windows Vista quase oferecido, etc. Entretanto a MS tem, por cá, a
sorte de lidar com um governo provinciano, pouco culto, e (diz-me apenas
a intuição) pouco íntegro.
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