[ANSOL-geral]Logotipos .. uma vez mais
J M Cerqueira Esteves
jmce arroba artenumerica.com
Sat, 9 Mar 2002 17:44:22 +0000
* Rui Miguel Silva Seabra <rms arroba 1407.org> [2002-03-09 00:19 +0000]:
> Se o argumento e nao conseguirem fazer algo bom com software livre
> (especialmente porque nem sequer tentaram) alegando nao ter software
> competente, acabamos na promocao de software nao livre, o que e um
> descredito para o software livre.
>
> Como nao acho que isto seja verdade (sodipodi para graficos vectoriais e
> gimp para rasterizados, so para citar 2 em duas areas diferentes mas
> aplicaveis), considero que nao ha motivos de ordem tecnica para que os
> logotipos nao sejam desenvolvidos com software livre.
Naturalmente eu também acho que seria bem preferível, quanto mais não
fosse como exemplo, que o logotipo fosse integralmente preparado com
software livre. Mas não acho que o eventual uso de algum software
não livre como parte do processo de preparação do logo por terceiros
fosse necessariamente, de uma forma *drástica*:
- promover software não livre;
- desacreditar o software livre.
E acho que convém ter mais algum cuidado ao tratar destas questões, mesmo
para bem do software livre. Tentando ruminar um bocado sobre o assunto:
- Em geral, o uso de um programa numa situação promove o seu uso noutras?
Em geral, se ele funcionar de forma que o utilizador acha conveniente,
sim. Ou porque o utilizador passa palavra ou porque os outros ao
verem o resultado podem achar que vale a pena usar a mesma ferramenta.
É normal haver mais reticências em usar algo desconhecido e preferir
continuar com as ferramentas com que se está familiarizado ou
com que outros no mesmo domínio estão familiarizados.
Isto não apenas para uma ferramenta específica, mas também para classes
delas, ou por autor ou por tipo de interface, por exemplo.
Neste contexto é natural que a "novidade", para alguns, das ferramentas
de software livre lhes levante dúvidas por estar for do contexto
a que estão habituados. A partir do momento em que se tornam
públicos exemplos de uso com sucesso, as reticências vão caindo
e novos hábitos se vão propagando.
- Em particular, o uso de software não livre para desenhar o logo da ANSOL
iria promover o software específico usado para isso e o software
não livre em geral?
Na prática, acho que não. Afinal imensos trabalhos gráficos bem mais
complexos se fazem todos os dias e existem diversas ferramentas com
capacidades muito parecidas. Do ponto de vista da comunidade de
artistas gráficos, haveria provavelmente mais atenção ao logo em si,
ao produto final, do que às ferramentas específicas usadas. As
ferramentas podem ser uma parte muito importante de uma actividade,
mas nem sempre é nelas que a atenção está mais focada. Possivelmente
(estou a especular por não ter grande contacto com artistas gráficos)
as ferramentas usadas hoje em dia para desenhar algo como um logotipo
fazem já "parte da mobília", pelo menos do ponto de vista de quem
desenha e está mais preocupado com a arte do desenho em si.
Possivelmente também, eles gostam pelo menos em parte de ter as
interfaces que têem no computador para fazer o seu trabalho pelas
qualidades delas, e não pela marca. E talvez por causa disso o Gimp,
por exemplo, parece ter imitado parte dessas características.
Ferramentas para resolver um mesmo problema acabam facilmente por ser
parecidas. Se no que for necessário ele acabar por fornecer as mesmas
capacidades técnicas, é bem possível que um artista, mesmo um sem
preocupação com as diferenças de licença, passe a usá-lo por ele ser
uma ferramenta igualmente útil (ou, idealmente, mais útil).
Mas claro que o contrário, um artista gráfico fazer um trabalho
visualmente espectacular e afirmar quase casualmente que até usou
software livre para o fazer, pode estimular a curiosidade dos outros.
Curiosidade sobre a ferramente e quem sabe curiosidade sobre a liberdade
associada.
Resumindo, a questão para mim não é tanto termos a infelicidade
de *promover software não livre* (acho que como promoção nesse sentido faria
pouca diferença), mas a de perder a oportunidade de dar mais um
exemplozinho que, no sentido contrário, ajude a promover software livre.
Mesmo assim, sem grande impacto publicitário, a não ser talvez
se conseguíssemos que fosse um designer dos mais "badalados" a dar o exemplo.
Claro que compreendo o receio de alguém vir a dizer "pobre da ANSOL,
tanto blah-blah sobre software livre e até o logotipo foi desenhado
com ferramentas da Corel|Adobe|whatever". Mas enfim, as más línguas
com discurso superficial arranjarão sempre outro alvo qualquer para disparar
se não tiverem esse. E por outro lado há problemas bem mais graves
para nos afligirmos neste momento. E o nosso tempo e capacidade de lhes
dar atenção são bastante limitados.
- Os artífices (nós e os outros) também têm hábitos... e limitações.
Não me considerando propriamente um artífice nesse campo, eu
detestaria ter de compor qualquer texto para imprimir "bonitinho" sem
ser em TeX usando emacs.
Alguns de nós editam com emacs, outros com vi, e cada um elogia ad nauseam as
virtudes do seu editor preferido. Devemos portanto compreender que
outras pessoas acabem por adoptar hábitos também.
Mesmo o artista gráfico com a maior curiosidade por software livre ou
interesse de princípio na natureza de liberdade desse software
(e não apenas nos aspectos técnicos) pode ter dificuldades em mudar de
ferramentas de um dia para o outro. E pode acreditar sinceramente que a
forma de nos dar a melhor contribuição artística possível seria usar as
ferramentas que por agora está habituado a usar, por ser nelas que por
agora melhor trabalha e por serem as que melhor interoperam com,
por exemplo, outras ferramentas (nomeadamente de hardware) que usa.
Às vezes usar ou deixar usar uma ferramenta pode não ser sinal de a querer
promover. Pode ser sinal de reconhecimento das limitações humanas.
Eu fiz uns bonecos em Metapost (que é livre), uns melhores, outros piores,
mas não acredito ter grande jeito para o lado visual "artístico"
(tomara eu saber melhorar visualmente o logo da Arte Numérica, mesmo
podendo explicar de onde veio a ideia para o boneco); por outro lado,
muitos artistas gráficos com imenso jeito para inventar bons logotipos
teriam possivelmente dificuldade em exprimir parametricamente mesmo os logos
mais "geométricos" na linguagem do Metapost; eu, por outro lado,
poderia ficar atrapalhado com as ferramentas (informáticas ou não) que
eles usam.
- O crédito também se estabelece pela sinceridade.
Claro que acho importantíssimo promovermos, junto dos potenciais
utilizadores, as ferramentas livres que vão amadurecendo. Mostrar o
Gimp, o Sketch e outros a pessoal que vive do grafismo é excelente. Se
gostarem, podem adoptar, e se não gostarem podem ajudar-nos a perceber
o que está por fazer; com sorte e trabalho, talvez isso ajude até a implementar
em software livre soluções não disponíveis em software proprietário.
Mas temos de ter cuidado com o que prometemos. Independentemente da
questão da liberdade, com toda a sua importância, há a questão técnica
da ferramenta como ferramenta. O software livre também pode ter
defeitos e falta de funcionalidade, como qualquer outro. Quando por
exemplo se tentar promover o Gimp, convém indicar o mais honestamente
possível o que ele faz e o que ele não faz. A própria documentação
procura numa certa secção clarificar isso, tanto quanto me lembro.
É essencial não correr o risco de mentir, mesmo involuntariamente,
sobre o que existe ou não existe. Infelizmente para certos problemas
não há solução técnica disponível em software livre ainda, seja por
falta de mão de obra interessada, seja por restrições impostas por
terceiros ou seja pela complexidade especial de alguns problemas.
E mesmo quando ela existe, aquilo que para uns serve como solução não
resulta para todos. Entre outras coisas, pelas tais limitações
humanas.
Admitir isso abertamente é importante, para:
- evitar criar expectativas erradas que promovam, afinal, a rejeição
por contraste da realidade com o que é anunciado;
- marcar uma diferença do ponto de vista ético por contraste com as
estratégias de marketing habituais no campo do software proprietário,
(recordando por exemplo o ponto 2.5 do código de ética da ACM
(http://www.acm.org/constitution/code.html )).
Isso não é contraditório com fazer todos os esforços para adoptar
pessoalmente e promover publicamente o aparecimento de alternativas
livres. Pelo contrário, ajuda a aumentar a nossa credibilidade para
defender o que defendemos. Aliás, se não faltasse ainda muito software
livre, menos seriam as nossas preocupações e menor a necessidade de uma ANSOL.
Não é por reconhecer as fraquezas que se fica mais fraco.
- Os fins, os meios, e as escalas de valores.
É importante perceber como *todos* nós, por mais que defendamos o
software livre, estamos dependentes do que não é livre e na prática o
usamos.
Volta-se sempre à escala de valores pessoais. Estive a falar de
ferramentas, e apesar de estarem envolvidas liberdades que tanto
prezo, eu não diria algo parecido com o acima em alguns outros campos.
Se fosse óbvio, por exemplo, que realizar uma tarefa de interesse
para mim (ou mesmo para a causa mais importante que eu possa defender)
iria implicar a morte de outra pessoa, a conversa seria completamente
diferente.
Quando não estão em causa, objectivamente, questões tão fundamentais,
acabo por ter de pesar as opções tendo em conta os vários valores
envolvidos. É por isso que, certamente com pena, estou a aceder à
Internet por vias que usam software não livre. Não falo do sistema
operativo (Linux) que estou a usar, e até estou a esquecer o firmware
de alguns componentes no PC, mas logo uns centímetros a seguir tenho
um Alcatel Speed Touch Home para comunicar por ADSL. Com software
dentro dele que não é livre. E depois centrais digitais, e Ciscos e
mais Ciscos correndo IOS, que não é livre (e para alguns deles até
haverá já alternativas com código livre). E consulto sítios WWW com
informação armazenada em Windows e Unixes variados
e levanto dinheiro em máquinas multibanco que correm Windows
e reservo bilhetes para viagens em sistemas de marcação que provavelmente
usam tudo menos software livre.
Estamos todos nós, todos os dias, a usar software não livre, por mais que
o tentemos rejeitar nas nossas máquinas pessoais. A esmagadora
maioria da informática que suporta a sociedade, como a conhecemos e de
que nos habituámos a depender, está provavelmente pendurada dele. E
no entanto, acho que vale a pena continuar a usá-lo, nesses âmbitos, enquanto
se tenta mudar nem que seja uma migalha desse panorama.
Pois, infelizmente a promover (sem aspas), pelo caminho daqui de casa
até vossas casas, o software fechado da Alcatel e o da Cisco, entre
muitos outros. Mas da mesma forma as ferramentas GNU correram
primeiro sobre sistemas não livres (e pessoalmente comecei a usá-las
sobre MS-DOS, VMS e Unixes variados). O mundo não muda de um dia para
o outro.
É pena? Para mim, sim. É paralisante? Para mim, não, ao considerar
os valores envolvidos nos meios e nos fins. Certamente com uma conclusão
muito diferente do que se estivessem em jogo morte e mutilação.
Se por exemplo eu quiser colocar online reproduções de livros antigos
(em texto, não como imagens), dar-me-á jeito usar um sistema de OCR.
Comecei a experimentar o Clara, um pouco desconfortável mas que
aparentemente vai servir. Felizmente há agora algumas soluções
livres. E mesmo existindo essas, se de usar ou não usar ferramentas
proprietárias para fazer a conversão vier a depender o conseguir
colocar online textos de forma livremente acessível, vou ficar perante
um conflito de valores. Posso não ter capacidade para construir
sózinho ferramentas alternativas, posso não conseguir que alguém o
faça em tempo útil. Estivessem outros valores mais fundamentais em
jogo e eu desistiria imediatamente de pegar nos livros. Mas na
situação descrita (simplificada porque na realidade há frequentemente
saídas alternativas), não é ainda absolutamente claro para mim qual o
valor a privilegiar; à partida parece-me que o interesse público em
ter livros livremente acessíveis chega para justificar
de alguma forma eu abdicar temporariamente de alguma liberdade como
utilizador, ou mesmo de "promover" temporariamente
(mesmo que sem publicidade desnecessária) uma solução não livre.
That's all...
JM