[ANSOL-geral]O que a ANSOL defende
J M Cerqueira Esteves
jmce arroba artenumerica.com
Thu, 17 Jan 2002 00:47:02 +0000
Quem está fechado sobre si próprio, quem parece desconhecer o mundo, e
quem acredita em utopias?
Liberdade *e* poder? Sim, e depois?. Para clarificar: uso abaixo a
expressão "legítimo" no sentido de "em acordo com alguns princípios
fundamentais que cada um aceite" (não no sentido estrito de "legal", mas
num sentido que até possa ser subjectivo).
Acho que poucos precisarão de... explicações sobre algumas relações entre
liberdades e poderes. Quando como frango, estou a exercer não só a
minha liberdade de comer frango, mas também, indirectamente, um poder
sobre aquele frango específico que alguém matou para mim e mais em
geral sobre o maciçamente maltrado grupo social dos galináceos (já que
havendo procura de mim e de muitos outros, alguém trata de arranjar
oferta reproduzindo-os e criando-os da forma mais lucrativa).
Eu vou comendo frango, por achar legítimo comer frango mesmo que não
concorde com tudo o que fazem com eles, outros não comem porque à luz
do quadro de "opressão do frango", da saúde pública ou de outra ideia
qualquer não o acham correcto. Legalmente (e, acho eu, legitimamente)
não me podem forçar directamente a deixar de o comer mas podem
defender as respectivas opiniões e tentar convencer-me delas. Se eu
acabar por concordar posso aceitar eu próprio que comê-los não é
legítimo. Se a maioria da população concordar, pode acabar por me
impedir de os comer. Se eu aceitar as decisões democráticas posso
achar que devo mesmo deixar de os comer. Se eu achar que apesar de
democráticas as decisões violam a minha consciência posso tentar fugir
para outro lado ou acabar por violar a lei.
Bom, mas esta não é uma lista sobre aves de capoeira nem, acho, sobre
fábulas e utopias. As liberdades e poderes de que aqui se fala, dos
lados dos autores e utilizadores, constituem para mim um assunto muito
mais importante, no momento, do que a postura ideológica face ao
consumo de frango. Isto porque o que está em causa é o alcance
*prático*, no nosso dia-a-dia, das liberdades/poderes de uns nas
liberdades dos outros num campo cujo impacto está longe de ser
desprezável, sendo esses uns e outros *pessoas* (e empresas), e por
causa da situação efectiva actual, não por causa de uma utopia vaga e
"académica".
* João Mário Miranda <jmiranda arroba explicacoes.com> [2002-01-16 21:29 +0000]:
> > 2. Que parte de "escolher uma qualquer licenc,a de software e' usufruir
> > de um poder sobre os outros, nao da sua liberdade propria" e que nao
> > entendeste?
>
> Essa frase é uma falácia. Pressupõe que o exercicio de poder não é um
> exercicio legítimo de liberdade. Escolher uma licença é o exercicio de
> um poder e uma liberdade. Não há nenhuma contradição entre uma coisa
> e outra. Limitar a escolha de uma licença é um exercicio de coacção.
> Escolher o tipo de licença é tão exercicio de poder como escolher o
> preço do software.
Os jogos de palavras podem ser argutos, mas os raciocínios que ficam
pelas palavras e esquecem a realidade fechando-se sobre si próprios
também podem suportar falácias. Talvez tudo dependa dos actos que o
João considera "exercício legítimo".
Mesmo ficando pelas palavras e indo para uma situação hipotética, eu
podia nem precisar de sair deste nível simplista dizendo que, se a
maioria defendesse a limitação da escolha de licenças (note-se, a
propósito, que são muito mais os consumidores do que os detentores de
"""propriedade intelectual"""), expressasse essa ideia através do
voto, e mais tarde o poder eleito transformasse isso em lei:
1. os votantes teriam exercido a sua liberdade (e poder) no acto legítimo
de votar;
2. os governantes teriam exercido a sua liberdade (e poder) no acto legítimo
de legislar sobre as licenças;
3. o João seria "coagido" para não escolher licenças diferentes das permitidas,
e *então* seria difícil convencer um tribunal de que escolher
irrestritamente a licença é um "exercício legítimo de liberdade".
Talvez um juíz lhe chamasse antes um "exercício de coacção", visto
à luz do que foi deliberado no âmbito de um "exercício de liberdade"
dos outros.
Curiosamente, o João e outros continuam a falar como se o passo
2. acima nunca tivesse acontecido e todos os exercícios de
liberdade/poder dos autores/editoras fossem *já agora* não só
"legítimos" (o que pode ser uma questão de opinião) mas também
*legais* (o que em cada momento depende da realidade (portuguesmente
ignorada) das leis). Ora esse passo não é hipotético. Já
aconteceu. Para cada uma dos objectos normalmente misturados por
simplificação (grosseira) na expressão "propriedade intelectual", há regras em
vigor segundo as quais nem todas as limitações que venham à cabeça do
detentor da "propriedade" (original ou em segunda mão) são legalmente
suportadas.
Suponho que o João pode registar as marcas "Explicações" (ou
talvez não, se for para algo relacionado com as ditas...) ou
"Zalfrumbolik", mas não pode impedir abertura de uma sapataria com esse
nome, a não ser que use a marca nesse ramo também.
O João não pode também, depois de escrever um livro que considera
abolutamente genial, publicar o livro e obrigar todos os leitores a
respeitar os direitos para além do período legalmente estabelecido em
cada momento (infelizmente a aumentar) ou impedir uma biblioteca dos
Olivais de a disponibilizar ao público sem lhe pagar taxa todos os
meses.
Isto porque (até agora, pelo menos) quem legislou achou que NEM TODOS
os exercícios de liberdade/poder por parte de um autor ou sucessor ou
editor seriam legítimos ou no melhor interesse da sociedade.
Em última análise são os nossos sistemas de valores que nos fazem
dizer o que achamos legítimo, independentemente do que está legislado.
Na melhor das hipóteses, admitindo que o João não se está
completamente nas tintas para o resto do mundo nem para as acções que
o resto do mundo pode exercer sobre ele, resta-me supor que o João
ache que num quadro de licenciamento irrestrito (mais irrestrito ainda
do que agora, parece) o sistema se ajustará automagicamente com
benefícios para todas as partes e sem irreversibilidades de longa
duração.
Nesse caso talvez o João nos possa explicar se acha que a situação
está a melhorar ou vai melhorar neste domínio, já que as liberdades de
exercer poder têm sido agora preferencialmente atribuídas ao lado dos
autores (talvez) e editores (certamente). Já vi o João criticar o
DMCA, e no entanto o DMCA pode ser visto como perfeitamente lógico à
base das liberdades que o João parece considerar serem legítimas para os
criadores. Já vi o João promover conteúdos abertos e ao mesmo tempo
defender exactamente as liberdades e poderes que permitirão
constranger cada vez mais aquilo que um autor pode escrever, ao ponto
de redefinir o que é legítimo fazer-se numa biblioteca pública e os
*factos* que se podem relatar em segunda mão. E afinal, se eu fosse o
"dono" de todo o arquivo fotográfico da Corbis, não devia ter eu a
liberdade para exercer poder sobre os criadores de enciclopédias e as
bibliotecas que as compram para receber dinheiro por cada consulta de
uma foto do meu arquivo?
E se o João não nos conseguir explicar como tudo vai acabar em bem com
toda essa liberdade para o poder, apesar da triste paisagem actual,
posso então usar também a etiqueta "utopia"?
É que se há utopia que nos dava jeito que funcionasse agorinha (mas
temo que não funcione) é essa, porque neste momento e até onde a vista
alcança não vejo perigo de que os programadores venham a ser
submetidos a uma suposta "lei GPL", mas sim a algo completamente
oposto e com efeitos de (chamemos-lhe) coacção muito mais dramáticos
sobre todas as partes envolvidas, excepto sobre um grupo
fortemente minoritário com poder económico fortemente dominante.
Apenas uns poucos com poder num mundo em que todos teriam, por princípio, a
liberdade. E, caso alguém não tenha notado, não estamos a falar da
relação liberdade/poder para comprar iates.
A propósito, se alguém nesta lista trabalha com ou desenvolve software
de computação gráfica (ou simplesmente gosta da liberdade de usar
grafismo 3D em Linux), gostaria de saber como está o vosso medidor de
liberdade/poder pessoal sabendo que a MS comprou boa parte das
patentes de computação gráfica 3D da SGI:
http://www.theregister.co.uk/content/54/23708.html