[ANSOL-geral] Da cedência voluntária

J M Cerqueira Esteves jmce artenumerica.com
Sábado, 30 de Janeiro de 2016 - 13:31:37 WET


On 2016-01-29 22:47, Graham Seaman wrote:
> Eu nao quero um sistema resistente a ataques de governos (alias nao acho
> possivel);

Eu quero. Todos o devemos querer. Certamento os governos querem-nos
também (aparentemente em ilusão de conseguirem exclusividade).

Porque:

1. governos não são entidades com bondade especial intrínseca
   a merecer excepções de confiança especial -- o estado não "somos
   nós", o estado é um conjunto de grupos de funcionários com a normal
   natureza humana (que pouco/nada mudou em milhares de anos e não
   recebe upgrade automático ao entrar em serviço estatal);

2. mesmo que se achasse ter o estado alguma bondade especial,
   nada indica ser possível atribuir exclusivamente a estados (muito
   menos apenas aos estados que achemos "legítimos" ou "amigos") tais
   poderes técnicos de ataque --- por exemplo, uma "chave dourada" que
   tantos pedem em cifra, uma que nunca fosse passível de exploração
   por outros estados ou mesmo qualquer criminoso não estatal;

3. na prática, os estados têm sempre enormes meios, quer técnicos quer
   coercivos, para investigação / coerção / punição de alvos
   específicos (alvos "legítimos" em algum cumprimento de lei que
   achemos moral, e ilegítimos mesmo que legais pela
   lei do momento);  mesmo que eu tenha sistemas resistentes
   a ataques de governos, os poderes de intervenção de governos
   sobre mim não se limitam ao ataque a esses sistemas: e.g., mesmo
   que o estado não tenha poder sobre matemática ou implementação
   criptográficas (tantas vez vezes o ataque é à implementação...),
   o estado tem sempre meios para me colocar sob vigilância em alguma
   das muitas camadas fora do meu controlo.

Gente como José Magalhães [0] parte sistematicamente da premissa
fraudulenta de dicotomia segurança-versus-privacidade [1] para repetir
que "não podemos deixar a polícia desarmada".

Mas o ponto 3 acima traduz-se em que 'sistemas resistentes a ataques de
governos' não são extinção de poder policial.  Esses sistemas podem
quando muito limitar algumas possibilidades de vigilância em massa a
priori --- e, como o Schneier bem sublinha, a vigilância por atacado é
um poder NOVO das polícias [2].

As polícias não estão "desarmadas", as polícias nunca estiveram tão
"armadas". A retenção de dados, cá introduzida no tempo em que o
cibermissionário esteve no governo, faria certamente inveja à Stasi.

Como é natural em qualquer actividade humana, as polícias não são imunes
a incompetência e preguiça. E é natural que na agenda de trabalho de
polícia surjam apetites de facilitação e de novos meios e poderes.  Pior
quando má polícia/má academia/maus políticos (e não-jornalismo):
-- promovem a agenda de trabalho/desejos de polícia a agenda de
   "segurança", tomando como auto-evidente que os valores desejados
   ou esperados sejam os mesmos, e até que os desejos da polícia
   correspondam a qualquer real optimização de eficácia;
-- e promovem essa agenda de "segurança" a agenda de direito
   (descartando alegremente fundamentos de Direito que a possam
   estorvar).

Um estado ideal em cumprimento de tais agendas de polícia facilmente
seria um estado policial.

Num estado ideal robusto em termos de Direito, uma constituição deveria
poder limitar a promoção legislativa de agenda de polícia a agenda de
Direito.  Mas, sendo a natureza humana o que é, insistimos em desprezar
a recomendação do Jefferson sobre estado e confiança [3] --- volta-se
sempre a presumir que "o estado somos nós", e de que a governação exige
como pilar a nossa confiança a priori.

Perante tudo isto, com o Direito transformado numa caricatura, já só nos
restam por vezes meios técnicos.  Não fazem milagres, não temos a nível
pessoal sequer grande capacidade de explorar todo o potencial deles, mas
não devemos ceder facilmente pedacinhos que nos restem.

Já bastam os riscos de criminalização de posse de sistemas de computação
genéricos, uma consequência final que parece lógica nesta 'evolução'.
Fica-nos muito mal sermos nós, voluntariamente, a dizer a governos "fuck
me harder".


[0] Para quem não sabe, o "cibermissionário" é assanhado promotor
nacional de vigilância por atacado.  Palestras light em que se afirma fã
de privacidade jamais deveriam obliterar a infâmia merecida pela
participação "portuguesa" na corrente securocrata da UE
 "Every object the individual uses, every transaction they make and
almost everywhere they go will create a detailed digital record. This
will generate a wealth of information for public security organisations,
and create huge opportunities for more effective and productive public
security efforts. There will also be significant risks of criticism
where failures occur, since critics will point to the hundreds of ways
the authorities could (or should) have noticed what was happening"
http://www.statewatch.org/news/2008/jul/eu-futures-dec-sec-privacy-2007.pdf
[de uma equipa liderada por José Magalhães, afirmando aqui uma visão de
pele 'democrática' mas "cover your ass" de estado policial: "se não
aproveitarmos isto, depois perguntam-nos porque não o fizemos"]

[1] sobre o mantra, ver
https://www.schneier.com/blog/archives/2008/01/security_vs_pri.html

[2] "Wholesale surveillance is not simply a more efficient way for the
police to do what they've always done. It's a new police power, one made
possible with today's technology and one that will be made easier with
tomorrow's."
https://www.schneier.com/essays/archives/2007/01/on_police_security_c.html

[3] "confidence is everywhere the parent of despotism — free government
is founded in jealousy, and not in confidence; it is jealousy and not
confidence which prescribes limited constitutions, to bind down those
whom we are obliged to trust with power"
http://www.constitution.org/cons/kent1798.htm






Mais informações acerca da lista Ansol-geral