[ANSOL-geral] Grave atentado à democracia

J M Cerqueira Esteves jmce artenumerica.com
Sábado, 14 de Fevereiro de 2004 - 03:52:26 WET


[Para os destinatários fora do contexto: trata-se aqui da questão
 da implementação em Portugal de outro tristemente célebre tratado
 aprovado por Portugal sem qualquer discussão pública nacional
 e quase sem nenhuma informação nos media: a convenção do cibercrime;
 ver por exemplo:

   http://www.gildot.org/articles/02/06/28/1453254.shtml
   http://www.gildot.org/articles/02/12/15/0732225.shtml
   http://www.gildot.org/article.pl?sid=04/02/13/1617252 
   (ontem... na versão portuguesa nem sequer exigindo mandato
    judicial para acesso aos dados)
]


"For the loss of the sense of the strange is a sign of adjustment, and
 the extent to which we have adjusted is a measure of the extent to
 which we have changed."
   
                                          Neil Postman

On Fri, 2004-02-13 at 20:36, André Esteves wrote:
> Em Sexta, 13 de Fevereiro de 2004 19:23, o Rui Miguel Seabra escreveu:
> Bem... Meus caros senhores... cripto e stacks de IP anónimoas por p2p... É no 
> que isto vai dar...

Quantas pessoas usam cifra?  E mesmo usando cifra, quantas
vão estruturar as comunicações de forma a disfarçar dados como endereços
IP, URLs, endereços de email, identidade pessoal (através de logs dos
ISPs e ciber-cafés associando endereços a clientes), data/hora?
Como dizia o outro, com a privacidade ilegalizada só os fora-da-lei
terão privacidade.  Se eu quiser cometer um crime recorrendo a alguma
troca de informação na Internet, certamente arranjo mecanismos
de comunicação suficientemente subtis (e complementados com vias
externas) para ficar "abaixo do radar".  Não estamos a falar
de "rocket science", a improvisão pode nem exigir grandes conhecimentos
de redes e usar mecanismos banais já usados antes de haver sequer
computadores, quanto mais Internet.   

Mas se eu for um utilizador normal vou estar certamente vigiável:
não tenho possibilidade nem motivação (e frequentemente nem conhecimento
do novo contexto legal) para procurar e usar subterfúgios.  Além
de que o trabalho "normal" me obriga a fazer acessos "normais" via rede.
Acessos normais têm tracing garantido.

Assim ao contrário do propagandístico "quem não deve não teme",
o mais rigoroso é dizer:  "quem não deve é quem mais deve temer".
Quem deve mesmo, e tem algum jeito, faz os arranjos necessários 
para menos temer.

Está aberta a porta a um estado policial.  Se eu trabalhar na polícia e
tiver tempo, a tentação natural, mesmo que as intenções sejam as
melhores, será "espreitar para ver o que dá"; alguém que já tenha
enfrentado problemas de intrusão numa rede e usado sniffers para
perceber o que se estava a passar deve perceber o dilema.  A facilidade
é demasiada, a tentação também, por mais nobres que sejam as intenções. 
Quem já trabalhou mesmo com uma rede local de uma universidade
provavelmente deu de caras algum dia, sem querer, com informação
potencialmente comprometedora sobre alguém (nem que seja "simplesmente"
na aparência nociva à reputação) a circular.    Em momentos desses,
muito fica nas mãos da ética de quem administra.  Mesmo com ética, a
quantidade de "suspeitas" geradas facilmente é enorme, e se a caça for
recompensada, a caça fácil e fútil será incrementada.  Sobre os riscos
de utilização indevida da informação, veja-se o recente caos nas escutas
telefónicas e imagine-se como a situação ficará melhor com dispensa de
mandatos.

O "low hanging fruit" à espera da apanha não será, na maior parte,
constituído por utilizadores criminosos.

Acrescentei à introdução ao artigo recente no Gildot links
para dois artigos antigos.  No segundo deles,

  http://www.gildot.org/articles/02/12/15/0732225.shtml

elogiei algures Celeste Cardona por na altura parecer estar
mais reticente a ceder ao que então parecia vir sobretudo como clamor da
oposição, PS e até BE incluídos, se me lembro bem.
A Maria José Morgado espalhava aos quatro ventos o canto da pedofilia +
crime económico + terrorismo, a oposição apanhava (como muitas outras
vezes, mindlessly) a boleia ("olha, está aqui uma coisa que o governo
NÃO fez e DEVIA ter feito"),  um tal Manuel Lopes Rocha (curiosamente
com história de consultor jurídico da Business Software Alliance)
aparecia citado na imprensa como  "especialista de direito informático"
a defender legislação que, curiosamente, interessa e muito aos seus
clientes (mote: "combate à pirataria") por razões pouco ligadas a
criancinhas e terrorismo.

Do lado do Ministério da Justiça vinha aparentemente uma posição mais
ponderada sobre a necessidade de respeitar a constituição e não legislar
à toa.  Mas agora vemos esta nova posição do ministério, o que no mínimo
makes one wonder como foi o processo de "convencimento" da (ou pressão
sobre a?) ministra.  Ou (esperemos ao menos que não) se afinal as
posições antigas e as novas têm menos a ver com convicções e mais a ver
com conveniências políticas do momento; ainda mais triste será se assim
for.

Sugiro:

- Que as pessoas com consciência das questões técnicas e éticas
  envolvidas (afinal muitos de nós, que usamos mais banalmente a
  Internet, afinal, ao contrário de alguns legisladores mais
  "info-excluídos") tentem esclarecer as forças políticas de como a
  Internet não é uma espécie de "sucedâneo de televisão" ou pura
  "ferramenta de entretenimento" que possa ter 
  leis de excepção varrendo a constituição para baixo do tapete.
  Que não se esqueçam que se trata de PESSOAS com os DIREITOS tantas
  vezes chamados de "inalienáveis" a falar as coisas do costume...  
  simplesmente por outra via que não a carta, o telefone, a conversa de
  rua (mas verifique-se também se a legislação agora proposta
  não inclui, meio "esquecida" pelos media, o mesmo tipo
  de armazenamento e disponibilização de dados sobre contactos
  telefónicos, já que tal era parte do pacote "encomendado" pela
  Europol).

- Que se fale com a Ordem dos Advogados, agora muito na berra.
  Contacto mais interessante que se poderia ter?
  Tenho ouvido algumas intervenções do António Marinho e parece-me
  ser alguém muito atento a questões de liberdades e direitos humanos
  frequentemente ignoradas em Portugal ou discutidas por outros de forma
  demasiado superficial e demagógica.  Alguém que vai direito ao assunto
  com conhecimento da lei e sensibilidade para os problemas sem
  queda fácil no politicamente correcto e nas modas do momento;
  essa é a minha impressão.

- Que se ofereça publicamente a algumas pessoas, incluindo:
  - o presidente da república,
  - o bastonário da Ordem dos Advogados,
  - o primeiro-ministro,
  - a ministra da justiça
  um exemplar do livro recente do Bruce Schneier:

    Beyond Fear
    Thinking Sensibly about Security in an Uncertain World
    http://www.schneier.com/book-beyondfear.html

  Ainda não o li, mas, pelo que tenho lido escrito pelo Schneier nos
  últimos anos, deve acertar em cheio nas questões em discussão.
  Mantendo até ao fim esperança que haja alguma genuína boa intenção
  em vários dos participantes envolvidos, nada como fazer
  um esforço para os esclarecer sobre os problemas que nos oferece esta 
  aparente via para a segurança, e de como se pensa em segurança
  a sério e de cabeça fria.
  Vou agora mesmo encomendar dois exemplares: um para mim,
  e outro que me disponho desde já a dispensar para a tal oferta.

Diz o artigo do DN:

 ``Ao «abrir» a Internet às forças de segurança, o Ministério da Justiça
   pretende que estas tenham as «ferramentas» necessárias para «combater
   a corrupção e criminalidade económico-financeira, as organizações
   terroristas, os crimes contra a segurança do Estado, o abuso sexual
   de crianças, crimes contra a paz e humanidade, sequestros,
   escravidão, e discriminação racial e religiosa.''

Saibamos ler o que aqui está e as portas ao abuso e à redefinição de
conceitos que assim ficam abertas.  À distância é muito mais fácil
reconhecermos os sinais que levaram a outras situações
deploráveis agora ensinadas (melhor ou pior) em manuais de História.
É muito mais difícil reconhecer esses sinais quando acontecem
gradualmente à nossa volta; e a necessidade natural de continuarmos a
tratar da nossa vida sem nos deixarmos paralisar força-nos (mesmo quando
não parece) a preferirmos o optimismo:

  "certamente não poderia acontecer aqui e agora e na Europa civilizada;
   vamos esperar o melhor"

Déjà vu?

Tempos tristes estes em que vivemos.  E mal damos por isso.
Altura para reler "Foreword from Amusing Ourselves to Death", do Neil
Postman:
http://www.serendipity.li/jsmill/post_1.html

Boa... Noite
                                     JM


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