[ANSOL-geral]Re: O que a ANSOL defende

J M Cerqueira Esteves jmce arroba artenumerica.com
Thu, 17 Jan 2002 22:39:17 +0000


* ajc arroba eurotux.com <ajc arroba eurotux.com> [2002-01-17 14:52 +0000]:
> 
> 
> On Fri, 18 Jan 2002, Rui Miguel Seabra wrote:
> 
> > > Do mesmo modo, não concordo com o sofware proprietário, mas defendo "até
> > > à morte" o direito de alguém o produzir e vender.
> >
> > Como ja se tentou varias vezes fazer entender, esse "direito" e na
> > realidade uma forma de poder sobre os outros: somos nos que estamos a
> > limitar a liberdade dos outros. A liberdade diz respeito a pessoa em
> > causa, e termina quando infringe com a liberdade dos outros.
> 
> Com todo o respeito que tenho por ambos os RMS, não acho que este
> argumento do direito e da liberdade, posto nestes
> moldes, tenha qualquer significado. São apenas palavras.
> O direito à vida é uma restrição à liberdade de matar. O direito
> a ter a minha casa e privacidade é uma restrição à liberdade dos
> outros lá entrarem...

Pegando com pinças na discussão até agora...

Creio que ninguém seria azelha a ponto de raciocinar sobre
o problema em abstracto numa forma universal do tipo

  "qualquer que seja X no espaço dos direitos, se existir uma liberdade Y tal
  que X restrinja Y então X é um "mau" direito"

e seria bom que as tentativas de refutação não fossem também por essa 
via abstracta, ao contrário do que às vezes parece estar a acontecer.

É claro que tudo depende da importância que damos a cada liberdade Y e
a cada direito X *específicos*, e a partir do momento em que
concretizamos X e Y já não estamos em jogos de palavras.
Rerepetindo-me, quando começamos a falar de um X e um Y concretos
entram em jogo os nossos sistemas de valores fundamentais e os nossos
juízos de valor sobre sistemas de organização da sociedade, mesmo que
inconscientemente, e assim o que cada um dos lados defende tem (espero
eu) mais a ver com essas convicções do que com resultados de quaisquer
jogos de palavras.

Quando X é o direito à vida e Y a liberdade de matar, poucos
defenderiam que "consagrar X na lei é mau por perturbar a liberdade
alheia de matar uns fulanos de vez em quando".

Quando X é o direito a matar e Y a liberdade para viver, a maioria 
inverte-se claramente.

Mas quando a discussão se especializa no âmbito do aborto, estas
relações de maioria-minoria podem bem ficar menos claras e mesmo
inverter-se.  A discussão acaba por vezes por parecer-se à desta
lista de email:
- quem abomina o aborto vê como a parte mais crucial do discurso
  alheio algo como "o `direito à vida' é mau porque nos
  tira a liberdade de matar" (isto é, "olha, eles dizem isto porque são 
  uns energúmenos que querem liberdade para matar");
- quem defende o aborto sente que os seus opositores são "uns simplistas
  abusivos que se limitam a condenar o aborto por ser supostamente
  uma forma de poder violento para restringir a liberdade de viver
  do que dizem dogmaticamente ser um ser humano".

Ou seja, o problema não está na correcção lógica do raciocínio
(formalmente semelhante) de ambos os lados.  Para qualquer deles, o
direito X limitar a liberdade Y é genuinamente um problema *se* a
liberdade Y for considerada mais importante que o direito X.

Ora, no campo do software como em campos mais fundamentais como o do
aborto:
- diferentes pessoas facilmente se apercebem de conjuntos diferentes de 
  "componentes" envolvidos em X e Y;
- e mesmo que essa percepção consiga ser a mesma, os "pontos" atribuídos
  a X e Y na escala pessoal de valores não são necessariamente iguais.


E assim a discussão pode continuar eternamente, eventualmente sem
ninguém a poder ganhar de forma "lógica", até pela dificuldade em
garantir "matematicamente" a superioridade de um sistema de valores ou
de um modelo de sociedade (ou de nós próprios) a outro.  Porque é que
matar um ser humano é algo errado e a nossa sociedade o deve proibir?
Quando se pensa nisso a sério, a coisa pode não ser simples.  A resposta
pode vir de uma crença religiosa que torne a vida algo de sagrado, do
respeito por alguém que o disse e a quem damos valor, por argumentos
económico-sociais, informalmente por "dar um mau jeito do caraças
poderem andar por aí a matar gente impunemente" ou na simples
perspectiva pessoal de "hei, eu não gostaria que me matassem, vamos
ilegalizar isso".

Voltando a algo menos dramático, defender que os autores devem ter
toda, alguma ou nenhuma liberdade sobre o que fazer com licenças,
patentes, e outras formas de restrição de uso do que criaram
depende por exemplo do que cada um acha sobre:
- o conceito de propriedade: é algo de fundamental, de primário ou 
  uma convenção em moda?
- a aplicabilidade do conceito de propriedade a objectos não físicos
  como as ideias, o discurso, as soluções de problemas, a arte, ...;
- o valor da propriedade (de vários tipos dela) quanto 
  confrontado com outros valores que se considera importantes;
- o possível impacto na sociedade do grau de liberdade
  que dá aos autores para controlar o uso da sua produção "intelectual":
  que benefícios ou malefícios virão de cada opção para as várias partes,
  como evoluirá a situação, qual o equilíbrio que se irá estabelecer...


As diferenças de valores são naturais, e saber o que aconteceria em
quadros legais diferentes do actual não é trivial.  Mais fácil talvez
é seguir o que se vai passando na prática e tentar aprender com isso.  Com base
nisto tudo, acho disparatado rotular imediatamente mesmo as opiniões
mais "extremas" que se possam ter visto aqui, de qualquer dos lados,
como "fanatismos" ou algo do género.  

Provavelmente ninguém aqui acusado de querer limitar algumas
liberdades/poderes dos autores o defenderia de ânimo leve e por gosto
de "coagir" mas sim com base nas consequências (por vezes
drásticas) que vai observando das mudanças já em curso nos equilíbrios
de direitos, nomeadamente o que considera serem atropelos a valores
mais cruciais para os indivíduos e para a sociedade.

E, por outro lado, mesmo os que defendem uma liberdade/poder total do
autor para decidir o que deixa ou não fazer com a sua obra talvez não
o façam por serem propriamente fãs de algumas das formas mais
"pesadas" que esse poder acaba por assumir e o outro "lado" mais
critica; talvez achem simplesmente que até num mundo sem restrições
legais a exercícios de poder (ou "contratos", se assim preferirem
chamar-lhes) dos autores sobre os consumidores (que não é, note-se, o
mundo actual) também é capaz de tender para um equilíbrio não prejudicial
aos valores que consideram mais importantes, mesmo alguns que são
partilhados pelos dois grupos.

A convergência entre os dois ou mais pontos de vista pode nem vir a
ser conseguida, o que não tem de ser dramático.  Mas será mau se a
reacção tender a ser acusarmos apressadamente o outro lado de
"fundamentalismo" ou outras etiquetas com "ismos" tão na moda nesta
época de... relativismos :-)

[Sorry por a mensagem não ser mais curta e mais clara, ou mesmo...
 útil.  Vai faltando tempo e os últimos dias têm sido complicados...]