[ANSOL-geral]Busca de projectos open-source portugueses...

J M Cerqueira Esteves jmce arroba artenumerica.com
Wed, 9 Jan 2002 07:11:04 +0000


> Não, estamos a falar da liberdade (não direito) de escolher uma licença,
> e assim do que ofereceremos a mais para além do produto final (o código
> fonte e os direitos de *distribuir* esse código e alterações próprias).

Estou a partir de uma situação de base em que tudo o que é tecnicamente
possível é permitido ao cliente e em que a source é distribuída.
Quando falo de "licença", refiro-me às restrições impostas tomando essa
situação de liberdade total para o utilizador como referência.  A
legislação sobre copyright impõe automaticamente algumas limitações, muitas
licenças de software acrescentam mais, e neste quadro a GPL
tenta "devolver" liberdades ao utilizador ao mesmo tempo que previne a
subsequente limitação dessas liberdades a outros.

> Mas o que se esteve a discutir é se o Saramago tem o direito (ou antes,
> a liberdade) de decidir não lhe dar o direito de pegar num livro dele,
> alterar o nome da capa, fazer umas correcções de português, adicionar
> um episódio +/- interessante, *e publicar esse novo livro*?

Neste momento ele tem a liberdade de decidir (aliás, tem de decidir
explicitamente dá-la se quiser permitir isso).  Preferia não sair do
campo do software e aumentar ainda mais as generalizações, mas em
termos de opinião pessoal, o que defenderia eu como ideal de licença
até nesse caso da ficção? Talvez (pensando apressadamente) a GNU Free
Documentation License.  Portanto, para mim o *ideal* seria NÃO dar ao
Saramago e editoras esse poder/direito/liberdade sobre obras
derivadas, que se estende até dezenas de anos depois da morte dele.
Mas obrigando as obras derivadas a respeitar quem escreveu a obra
original (ou seja, não autorizar o plágio disfarçado).  Se e quando será 
factível nesse campo não sei.   Antes de pensar nisso
há de qualquer forma outros problemas para resolver, já que o movimento
actual é no sentido contrário: extensão do copyright cada vez mais duradoura.

> O ponto de vista do RMS é que o Saramago não tem essa liberdade: isso
> deixa de ser liberdade pois entra em conflito com a tua (como leitor).

A partir do momento em que o Saramago publica o livro.

> Este teu comentário confunde-me um pouco... Usando o exemplo farmacêutico,
> o que estaria em causa seria: havendo uma única empresa farmacêutica
> que produzisse um medicamento para certa doença, mas de uma forma
> proprietária, deveríamos transigir neste caso para salvar a nossa vida?
> (Claro que comparar salvar vidas com software é um absurdo, mas não
> percebo muito bem o teu comentário pois falas em dar mais privilégios
> às empresas, e ao mesmo tempo salvar mais vidas...)

A questão é a que preço vale a pena comprar conveniências temporárias.
Mesmo agora há limitações aos negócios que podem ser feitos, às
restrições que um autor ou produtor pode negociar com os seus
clientes.  Supostamente terão partido de considerações sobre o
equilibrio das liberdades do produtor com o bem do cliente que se
considerou deverem estar consagradas em lei.  Mesmo quando se trata de
salvar vidas, pode haver princípios criados a pensar no longo prazo
que sobrepõem ao que poderia ser uma vantagem de curto prazo (no
exemplo, concessão de liberdades contratuais especiais à empresa de
medicamentos).

> Usas Linux e ferramentas GNU porque são mais estáveis e melhores que
> as da Microsoft e outros Unixes. 

Comecei a usar ferramentas GNU e outras de software livre por serem
mais estáveis e melhores.  Isso não quer dizer que essa fosse a
*única* razão do meu interesse no início e não é a principal hoje em
dia.  Se a Microsoft produzisse agora um sistema de processamento de
texto *melhor* do o TeX, com uma interface de que eu gostasse, mas com
uma licença semelhante às habituais da MS, eu *não* o usaria.

> Se inicialmente a Microsoft e esses Unixes fossem obrigados a usar a
> GPL, haveria necessidade para o Linux e GNU?

Poderia não haver em termos de liberdades do utilizador, mas haver em
termos de razões técnicas.  O que queres dizer, que é à MS e às
licenças de software mais restritivas que devemos a qualidade do
material GNU e a liberdade das licenças GPL?  O João parecia dizer o
mesmo.  Desculpem, mas não percebo este raciocínio.  Demasiado brilhante
para a hora avançada e o meu cansaço, talvez.

> > - E os respectivos programadores libertam produtos sob licença GPL para 
> >   serem "diferentes" e saltarem à vista na paisagem dominada pelo software 
> >   proprietário, quiçá motivados pela vontade de "dar" e ficar famosos
> >   no meio de um mundo egoísta?
> É engraçado como misturas objectivos generosos e egoístas...

Eu?

> Num mundo GPL não serias forçado a usar Windows e Word, excepto porque
> num mundo GPL existiria a possiblidade do Windows e Word serem técnicamente
> superiores...

É claro que não.  Como expliquei, estava a caricaturar o facto de se
ver um mundo GPL como um *problema* para o fomento da produção e uso
de software GPL.

> Antes, conseguiu ele achar piada à programação num mundo não-GNU? Conseguiu
> ele desenvolver o melhor sistema de typesetting num mundo não-GNU? Conseguiu
> Linus Torvalds desenvolver um dos melhores sistemas operativos num mundo
> não-GNU? Conseguiu RMS desenvolver um sistema operativo completo num mundo
> não-GNU? Parece que sim, e que afinal, sempre tiveram a liberdade para o
> fazer não obstante o software proprietário...

Tiveram liberdade?  Mas que medida de liberdade? 

Já agora, antes do mundo não-GNU havia, caso não saibas, um mundo com
software mas sem-EULAs-tal-como-os-conheces-hoje.  Claro que a situação tem
continuamente piorado.  Terem eles conseguido estes feitos num mundo
não-GNU (e portanto com MENOS liberdade para o programador no acto de
programar) dá-lhes ainda mais mérito a eles, e não necessariamente ao
mundo.  O RMS teve de ter extremo cuidado para não aproveitar código
de software proprietário.  O Torvals idem. Idem para milhares de
outros programadores.  E é por causa desse esforço, que não parou, que
temos hoje a liberdade que temos ao usar estas ferramentas e que
grandes pedaços destes projectos não foram engolidos por algum peixe
maior que poderia vir depois de alguns anos dizer que lhe tinham
roubado código.

Será que não tinham programado mais confortavelmente sem terem de
manter essa preocupação constante com copyrights e patentes?
Programar já de si daria bastante trabalho, sem ter de pensar nas
questões legais.  E no entanto há quem diariamente as leve muito a
sério e nos forneça bons produtos de ambos os pontos de vista (técnico
e legal).

Numa terra como a nossa, habituada à impunidade e ao desprezo das
leis, é natural que não se não se dê grande valor a estas questões e
que se acuse quem se preocupa com elas de ser demasiado picuinhas e
legalista.  Não admira que não sintamos na pele a questão das
licenças: na prática comportamo-nos em grande escala como se as
licenças não existissem e copiamos alegremente software da MS a torto
e a direito (para felicidade, diga-se, da MS).  Se vivessemos noutra
terra, eu perguntaria se gostarias de vir a ter de programar em
contacto permanente com advogados.  Em Portugal nem me admiro.
Vivessemos noutra terra e eu perguntaria se não estás a errar o alvo
sobre quem está a atacar a liberdade do programador, neste caso no
acto mais fundamental de programar (sem o qual não há nada
para... distribuir).

Se isto tudo parece paranóia e não perceberes como a liberdade de
outros programadores imporem restrições, que defendes, pode afectar 
a tua vida até como programador, espreita este exemplo do... cinema:

  http://cyberlaw.stanford.edu/future/excerpts/

> Nota: Eu apoio o mais possível o software livre, aceito o open source, e
> desprezo o proprietário (é pena o Quake3 só ser libertado em GPL daqui a
> uns anitos). E sou a favor em falarmos apenas de software livre;
> criticarmos o software proprietario e quem o usa; mas não sou a favor
> do conceito de que as pessoas não têm a liberdade de escolher a sua
> licença.

Ao falar em "liberdade de escolha", só por si, toda a gente começa por
pensar que liberdade de escolha é algo excelente.  Na prática algumas
liberdades de escolha estão limitadas pelos problemas que podem
implicar para terceiros (nomeadamente colisão com outras liberdades).

As licenças de software têm implicações legais.  Neste sentido,
escolher licenças não é como fazer escolhas estéticas ou técnicas
em que haja muitas opções de qualidade disponíveis.  As implicações 
legais afectam a vida dos utilizadores e da sociedade em geral mas 
também voltam à mesa do programador quando ele próprio utiliza
ferramentas e/ou faz código derivado de outro.

A GPL (que não deve ter sido nada fácil de escrever) vem de um
conjunto de conceitos sobre esse equilíbrio de direitos. Para o
Stallman, a FSF e muitos outros ela é a licença que mais seguramente
defende esse equilíbrio no contexto legal actual.  Os defeitos
apontados a outras licenças derivam de se achar que elas falham ou nos
direitos defendidos ou na robustez perante o contexto e a prática
legais.

De quem lutou anos e anos por um conjunto de ideais incorporados na
GPL e teve o trabalho de labutar nela, é natural que seja essa a
licença que sente que o software devia ter.  Criar a GPL não foi um
"passatempo" para criar "mais uma" licença e acrescentar colorido à
paisagem.  Ela resulta de um conjunto de valores.  Daí que seja
perfeitamente natural se o Richard Stallman disser que acha ser aquela
a licença que todos deveriam usar.  Isso não é, como alguns disseram,
armar-se em polícia.  É ser coerente.  Concorde-se ou não com o
sistema de valores na base do projecto GNU, o que deveríamos esperar?
Que depois de trabalhar tanto tempo pelos direitos dos utilizadores e
programadores ele viesse dizer no fim que uma licença criada para
proteger o software livre é um aspecto menor?